por Lo-Ruama Lóring Bastos
A realidade do professor da escola pública de educação básica transcende o desafio pedagógico; é uma batalha diária contra um ecossistema tóxico, urdido por políticas públicas equivocadas, gestões autoritárias e uma profunda desvalorização. No cerne deste martírio estão as metas abusivas e desconectadas da realidade escolar. Impostas verticalmente por secretarias de educação alheias ao chão da sala de aula, transformam o processo educativo em uma linha de produção quantificável. A aprendizagem é reduzida a índices, taxas de aprovação e resultados em testes padronizados, ignorando as complexidades sociais, afetivas e cognitivas dos alunos. O professor, espremido entre a necessidade de cumprir tais metas e o desejo de educar integralmente, vê-se dilacerado. A cobrança excessiva é a sombra constante: cobram resultados impossíveis, infinitos formulários, justificativas injustificáveis para gestores distantes.
Essa pressão encontra terreno fértil no assédio moral institucionalizado. Gestores escolares, muitas vezes também pressionados por metas absurdas ou movidos por uma lógica perversa de poder, transformam-se em agentes de humilhação e coerção. Professores são publicamente repreendidos, desautorizados, sobrecarregados com tarefas alheias à docência e ameaçados velada ou explicitamente. A falta de autonomia pedagógica é o corolário deste despotismo. Planos de aula engessados, metodologias impostas sem diálogo, proibição de adaptações criativas às necessidades da turma, o profissional é tratado como um executor passivo, um mero repassador de conteúdos pré-fabricados.
A recente tragédia que vitimou a professora Silvaneide de Oliveira, no dia 30 de maio, em Curitiba, é um grito de alerta ensurdecedor contra esse sistema doente. Relatos dão conta de um ambiente de trabalho marcado por intensa pressão, assédio e desrespeito por parte da gestão escolar. Sua morte, em circunstâncias desoladoras, fortemente associada ao sofrimento psíquico desse contexto laboral insustentável, não é um caso isolado. É a ponta do iceberg de um adoecimento coletivo, o resultado extremo de um cotidiano que mina a dignidade e a saúde mental dos educadores.
Paralelamente, assiste-se à imposição acrítica de plataformas digitais, vendidas como panaceias modernizantes e lançadas sem infraestrutura, formação docente ou qualquer consulta sobre sua real utilidade pedagógica. Longe de empoderar, tornam-se mais uma fonte de frustração, sobrecarga e mecanismo de controle e monitoramento sobre os docentes, sob o disfarce da tecnologia. Softwares fiscais plantonistas, que todo mês “é o funcionário do mês”, entrega cada passo do usuário (Silvaneide morreu na escola em contexto semelhante).
Este cenário retrata uma política que desvaloriza a educação pública e os seus agentes. A lógica da produtividade esmaga a subjetividade e a relação humana que são a essência do ensinar e aprender. O discurso da meritocracia e da responsabilização individual do professor serve para ocultar falhas estruturais e as violências institucionais que permeiam o sistema.
A falsa promessa de inclusão e eficiência dessas plataformas, mascara a ampliação de desigualdades e desumanização do processo educativo. Estudantes sem acesso estável à internet ou dispositivos adequados são automaticamente excluídos, aprofundando o fosso social na vida real. Professores, já sobrecarregados, são transformados em meros operadores de sistemas, forçados a dedicar horas à navegação em interfaces complexas e à resolução de problemas técnicos, em detrimento do planejamento pedagógico reflexivo e do contato humano significativo.
Essa imposição reflete também a captura da educação pública pela lógica do mercado. As plataformas, desenvolvidas e geridas por corporações privadas, transformam dados educacionais em commodities e introduzem uma relação de consumo onde deveria haver construção de conhecimento. A padronização do ensino através de algoritmos e métricas de desempenho, ignora a singularidade dos contextos escolares e das trajetórias de vida, reduzindo a complexidade do aprender a indicadores quantificáveis. O foco desloca-se da formação crítica e cidadã para o treinamento de habilidades técnicas e a adaptação passiva a sistemas externos, reforçando hierarquias e alienando tanto docentes quanto discentes do sentido profundo da educação.
Sobre a autora
Lo-Ruama Lóring Bastos é mestra em Educação e Docência pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). É Pesquisadora, Historiadora, Professora do Ensino Superior, Consultora Educacional. Trabalha com Formação de Gestores e Professores; Competências Socioemocionais; Qualidade da Saúde Mental no Ambiente de Trabalho; Mal-estar Docente e Escolar.
Contato: @viamestra