por Jamir Calili
Costumo dizer aos meus alunos do curso de Direito da UFJF – Campus GV que, embora vivamos em 2025, ainda usamos ferramentas conceituais dos anos 1980 e 1990 para interpretar um mundo que já mudou de paradigma. É como tentar rodar um aplicativo moderno num celular antigo: trava, dá erro, não carrega. O mesmo ocorre com nosso modelo mental. Tentamos encaixar novas formas de viver, produzir e trabalhar em categorias ultrapassadas. O resultado? Uma sociedade com uma regulamentação ineficiente, incapaz de proteger os vulneráveis ou fomentar inovação com justiça.
Tomemos como exemplo emblemático as relações de trabalho. Basta observar os trabalhadores de aplicativos: entregadores, motoristas, cuidadores, freelancers. São empregados? A resposta clássica exigiria comprovar subordinação, horário fixo, habitualidade, entre outros critérios. Mas não há chefe direto, ponto eletrônico ou carteira assinada. Por outro lado, tampouco são empreendedores no sentido schumpeteriano — aquele que inova, arrisca capital e colhe lucros. Falta-lhes autonomia real, capital próprio e poder de decisão.
Temos, então, um novo tipo de trabalhador: autônomo dependente, precarizado, sem as garantias da CLT, mas também sem os privilégios do capital. E mais: muitos não querem voltar ao regime celetista, pois não desejam as amarras do trabalho tradicional. Estão num limbo jurídico. Como disse Ulrich Beck, em sua “sociedade de risco”, o trabalho tradicional se fragmenta e as novas formas exigem novas categorias e políticas.
No campo tributário, o cenário não é diferente. Usamos fórmulas clássicas para tributar propriedade, renda e circulação de bens. Mas essas fórmulas são ineficazes diante de bens virtuais e serviços globais. Hoje coexistem duas economias: uma tributada, que financia os serviços públicos, e outra oculta, que também consome esses serviços, mas não contribui. Um aluno me contou que um pack de skins de armas virtuais pode custar milhões. Quem vende? De onde? Qual a natureza jurídica da operação? Ninguém sabe ao certo — e, provavelmente, ninguém tributa. Enquanto isso, o produtor de carne, tomate, alface e arroz é facilmente identificado e onerado.
Diante desse vácuo, muitos trabalhadores acabam se identificando com o discurso dos grandes empresários. Chamam-se “donos do próprio negócio” e passam a defender pautas que, na prática, os prejudicam. Segundo dados da Agência Sebrae, quase 70% dos empreendedores brasileiros têm renda de até dois salários-mínimos — cerca de R$ 3 mil. É mais do que o mínimo? Sim. Mas isso não os torna capitalistas. Estão mais próximos dos assalariados do que dos acionistas da Magazine Luiza, das redes Havan ou Eletro Zema.
Ainda assim, repetem discursos contrários à taxação de lucros e dividendos, à previdência pública, ao salário-mínimo ou ao Estado como promotor do desenvolvimento. Mas quem se beneficia dessas pautas são os grandes conglomerados — não o dono da mercearia, da loja de roupas ou da pequena confecção.
Essa consciência equivocada sobre seu papel econômico é um fenômeno grave. Cria um exército de trabalhadores que lutam contra os próprios direitos, iludidos por um pertencimento simbólico à elite empresarial. A ilusão do “eu sou empresário” encobre o fato de que muitos são apenas gerentes empoderados, com as responsabilidades do dono e os riscos do empregado. Ao mesmo tempo, o velho binômio “capitalista versus trabalhador”, típico do século XX, já não é suficiente para explicar a complexidade das relações atuais.
Se quisermos avançar em políticas públicas sérias para o trabalho, a renda e a seguridade social, precisamos partir desse diagnóstico. Ou mudamos as lentes, ou seguiremos regulando o presente com fórmulas do passado.
Está na hora de uma nova gramática. Precisamos de uma regulamentação moderna das relações econômicas e do trabalho, de novos mecanismos de resolução de conflitos, capazes de reconhecer as zonas híbridas; de fomentar novas formas de organização coletiva e arranjos de seguridade social compatíveis com a realidade atual. O futuro do trabalho não pode ser tratado com a lógica do século XX. Se quisermos reduzir a informalidade, estimular a produtividade e garantir dignidade, precisamos reconhecer que a maioria dos "empreendedores" brasileiros ainda é, na prática, trabalhadora.
Jamir Calili, professor da UFJF, vereador, membro da Academia Valadarense de Letras, na cadeira de Machado de Assis.




