Logo Jornal da Cidade - Governador Valadares
Banner

Desafios normativos do século XXI: empreendedores ou “meros trabalhadores”

Leia a coluna desta semana de Jamir Calili
Desafios normativos do século XXI: empreendedores ou “meros trabalhadores”. Foto: Reprodução da Internet
domingo, 3 agosto, 2025

por Jamir Calili

Costumo dizer aos meus alunos do curso de Direito da UFJF – Campus GV que, embora vivamos em 2025, ainda usamos ferramentas conceituais dos anos 1980 e 1990 para interpretar um mundo que já mudou de paradigma. É como tentar rodar um aplicativo moderno num celular antigo: trava, dá erro, não carrega. O mesmo ocorre com nosso modelo mental. Tentamos encaixar novas formas de viver, produzir e trabalhar em categorias ultrapassadas. O resultado? Uma sociedade com uma regulamentação ineficiente, incapaz de proteger os vulneráveis ou fomentar inovação com justiça.

Tomemos como exemplo emblemático as relações de trabalho. Basta observar os trabalhadores de aplicativos: entregadores, motoristas, cuidadores, freelancers. São empregados? A resposta clássica exigiria comprovar subordinação, horário fixo, habitualidade, entre outros critérios. Mas não há chefe direto, ponto eletrônico ou carteira assinada. Por outro lado, tampouco são empreendedores no sentido schumpeteriano — aquele que inova, arrisca capital e colhe lucros. Falta-lhes autonomia real, capital próprio e poder de decisão.

Temos, então, um novo tipo de trabalhador: autônomo dependente, precarizado, sem as garantias da CLT, mas também sem os privilégios do capital. E mais: muitos não querem voltar ao regime celetista, pois não desejam as amarras do trabalho tradicional. Estão num limbo jurídico. Como disse Ulrich Beck, em sua “sociedade de risco”, o trabalho tradicional se fragmenta e as novas formas exigem novas categorias e políticas.

No campo tributário, o cenário não é diferente. Usamos fórmulas clássicas para tributar propriedade, renda e circulação de bens. Mas essas fórmulas são ineficazes diante de bens virtuais e serviços globais. Hoje coexistem duas economias: uma tributada, que financia os serviços públicos, e outra oculta, que também consome esses serviços, mas não contribui. Um aluno me contou que um pack de skins de armas virtuais pode custar milhões. Quem vende? De onde? Qual a natureza jurídica da operação? Ninguém sabe ao certo — e, provavelmente, ninguém tributa. Enquanto isso, o produtor de carne, tomate, alface e arroz é facilmente identificado e onerado.

Diante desse vácuo, muitos trabalhadores acabam se identificando com o discurso dos grandes empresários. Chamam-se “donos do próprio negócio” e passam a defender pautas que, na prática, os prejudicam. Segundo dados da Agência Sebrae, quase 70% dos empreendedores brasileiros têm renda de até dois salários-mínimos — cerca de R$ 3 mil. É mais do que o mínimo? Sim. Mas isso não os torna capitalistas. Estão mais próximos dos assalariados do que dos acionistas da Magazine Luiza, das redes Havan ou Eletro Zema.

Ainda assim, repetem discursos contrários à taxação de lucros e dividendos, à previdência pública, ao salário-mínimo ou ao Estado como promotor do desenvolvimento. Mas quem se beneficia dessas pautas são os grandes conglomerados — não o dono da mercearia, da loja de roupas ou da pequena confecção.

Essa consciência equivocada sobre seu papel econômico é um fenômeno grave. Cria um exército de trabalhadores que lutam contra os próprios direitos, iludidos por um pertencimento simbólico à elite empresarial. A ilusão do “eu sou empresário” encobre o fato de que muitos são apenas gerentes empoderados, com as responsabilidades do dono e os riscos do empregado. Ao mesmo tempo, o velho binômio “capitalista versus trabalhador”, típico do século XX, já não é suficiente para explicar a complexidade das relações atuais.

Se quisermos avançar em políticas públicas sérias para o trabalho, a renda e a seguridade social, precisamos partir desse diagnóstico. Ou mudamos as lentes, ou seguiremos regulando o presente com fórmulas do passado.

Está na hora de uma nova gramática. Precisamos de uma regulamentação moderna das relações econômicas e do trabalho, de novos mecanismos de resolução de conflitos, capazes de reconhecer as zonas híbridas; de fomentar novas formas de organização coletiva e arranjos de seguridade social compatíveis com a realidade atual. O futuro do trabalho não pode ser tratado com a lógica do século XX. Se quisermos reduzir a informalidade, estimular a produtividade e garantir dignidade, precisamos reconhecer que a maioria dos "empreendedores" brasileiros ainda é, na prática, trabalhadora.

Jamir Calili, professor da UFJF, vereador, membro da Academia Valadarense de Letras, na cadeira de Machado de Assis.

Gostou? Compartilhe...

Leia as materias relacionadas

domingo 24, agosto 2025

Barulho dos Infernos

domingo 24, agosto 2025

Medo de Amar

magnifiercrossmenu