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Por Políticas Públicas Contínuas para as pessoas em situação de rua: Uma análise propositiva para o programa municipal

Leia a coluna desta semana de Jamir Calili
Pessoa em situação de rua. Foto: Freepik.com
domingo, 29 junho, 2025

por Jamir Calili

A recente iniciativa da Prefeitura de Governador Valadares, intitulada “Rua Não É Lar”, reacendeu um debate necessário: o que fazer com as pessoas em situação de rua? A operação divulgada com destaque nas mídias oficiais mostra uma ação de remoção, dispersão e ostensiva “ocupação dos espaços públicos”, visando retirá-las das vias e praças. Mas é fundamental perguntar: remover resolve?

Já abordei essa questão há algum tempo nesta coluna. E volto agora, não apenas para reafirmar o que disse antes, mas para alertar: só a remoção, sem um projeto consistente de política pública, é como varrer a sujeira para debaixo do tapete. A rua realmente não é um lar — mas fingir que o problema se resolve apenas com viaturas e uniformes não apenas ignora a complexidade do tema como pode agravá-lo, espalhando essas pessoas ainda mais pela cidade e aprofundando sua condição de vulnerabilidade.

Pessoas em situação de rua são uma realidade em todas as cidades médias e grandes do mundo, e a pandemia apenas intensificou essa problemática. Governador Valadares não é exceção. A diferença entre os municípios está na capacidade de articular respostas éticas, consistentes e eficazes para esse desafio social.

Esse fenômeno envolve múltiplas causas: ruptura de vínculos familiares, desemprego, dependência química, transtornos mentais, falência das redes de apoio e ausência de políticas públicas. E envolve, acima de tudo, pessoas. Homens e mulheres com histórias, dores, medos, esperanças e, inclusive, estratégias. Reduzir essa população à condição de “problema” é desumanizador; tratá-la como massa uniforme é ineficaz.

Na formulação de políticas públicas, chamamos isso de problema complexo — aquele que não admite soluções simples, imediatistas e lineares. Problemas complexos exigem respostas coordenadas, intersetoriais e contínuas. Eles não se resolvem com medidas pontuais, nem com operações esporádicas, ainda que bem-intencionadas.

Por isso, volto aqui a insistir: a solução não virá da repressão, mas da integração. Retomo cinco propostas que já apresentei, porque continuam urgentes e possíveis.

  1. Reestruturação funcional e técnica da Secretaria Municipal de Assistência Social. Isso inclui valorização dos profissionais, especialmente os assistentes sociais, por meio de capacitação e melhores condições de trabalho e remuneração. Quem cuida precisa ser cuidado e reconhecido.
  2. Reestruturação física das unidades de atendimento. Os espaços de assistência precisam ser acolhedores, com estrutura técnica adequada, transporte, equipamentos e ambiente digno. Um serviço desestruturado deslegitima a política pública aos olhos de quem mais precisa dela.
  3. Integração entre as áreas públicas. Saúde, habitação, cultura, lazer, segurança e educação precisam dialogar e atuar juntos. O enfrentamento da situação de rua é tarefa coletiva, não exclusiva da assistência social.
  4. Política pública em saúde mental e mediação de conflitos. A ausência de ações específicas nessa área é uma das maiores lacunas no enfrentamento da exclusão social. Sem acolhimento psicológico, centros de atenção psicossocial ativos e estratégias de reintegração, qualquer esforço será paliativo.
  5. Programa habitacional específico. Moradia não é um luxo, é um direito. É preciso pensar em soluções como moradias assistidas, aluguel social e alternativas de abrigamento que respeitem a dignidade e a autonomia dos sujeitos.

É possível fazer mais e melhor. Mas para isso é necessário romper com a lógica da política pública como espetáculo ou resposta emergencial. A cidadania se constrói com projetos permanentes, que compreendam a vulnerabilidade como questão de direito, e não apenas de caridade/ generosidade.

Também é hora de revisitar nossa própria postura enquanto sociedade. Ainda há muito estigma, preconceito e simplificação. O cidadão em situação de rua não é um inimigo, nem alguém que “escolheu” estar ali por desvio moral. É alguém cuja trajetória rompeu-se, que perdeu vínculos e, muitas vezes, sentido. Alguns recusam ajuda? Há pessoa que se aproveitam da situação para cometer outros crimes como furtos e tráfico? Sim, e é justamente aí que precisamos insistir com alternativas respeitosas e continuadas, e não com coerção ou invisibilização.

“Rua Não É Lar” é um nome que carrega uma verdade. Mas, isoladamente, a operação corre o risco de virar apenas uma manchete ou uma tentativa de “limpeza social”. Que esse momento nos sirva, ao menos, como um convite ao aprofundamento. Um alerta de que, sem política pública efetiva, o problema voltará — talvez pior, talvez maior, mas sempre mais doloroso. E o mais grave: quando a rua é tudo que resta, qualquer canto vira lar.

Jamir Calili, professor da UFJF, vereador, membro da Academia Valadarense de Letras, na cadeira de
Machado de Assis.

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