TEXTO E PESQUISA: TIM FILHO
Em 1932, a Estrada de Ferro Vitória a Minas pertencia a empresa Morrison Knudsen do Brasil, e operava com trens diários, a maioria misto, com vagões de carga e de passageiros, viajando por uma linha que os ferroviários chamavam de “linha singela”, ou seja, uma única linha. Uma composição ia pra Vitória e outra voltava.
Pra não ocupar a mesma linha e bater de frente, uma das composições entrava em um desvio. Assim que a outra passava, a que se desviou retomava ao seu caminho. Os vagões eram de madeira com cobertura de lona.
Os de segunda classe tinham bancos de madeira e os de primeira, cadeiras de vime trançado por artesões habilidosos.
Muito chique! As viagens eram lentas. De Cariacica até Figueira, o percurso era feito em 12 horas, ao contrário dos dias atuais, cuja viagem neste mesmo trecho dura 6 horas.
O trem ficava parado muito tempo nas estações para carga e descarga de gaiolas com galinhas, sacas de milho, feijão, café, animais como cabrito, porco, boi, vaca e mais um tanto de trem.
Foi num trem desses que o Ibituruna Foot-Ball Club (o clube que deu origem ao Democrata) embarcou numa terça-feira de carnaval, dia 9 de fevereiro de 1932, para jogar no povoado da Cachoeirinha, onde já residiam vários figueirenses.
Em 2008, eu conversei com Emydio Cypriano, um pioneiro da Figueira, e perguntei a ele o que tinha de especial em Cachoeirinha. “Tinha muita comida e naquela época, lugar bom era aquele que tinha comida. Mas lá tinha gente trabalhando, gente capinando, era isso que tinha lá”. Perguntei se lá tinha um bom campo de futebol e como era.
“Naquela época qualquer lugar plano e limpo virava campo de futebol. O campo de lá era desse jeito”. Com tantos figueirenses morando em Cachoeirinha, com a facilidade de se chegar lá de trem, pela Estrada de Ferro Vitória a Minas, o Ibituruna Foot-Ball Club embarcou rumo ao povoado para o jogo contra o time do lugar, o Palestra Itália.
A viagem deve ter sido festiva, afinal, Figueira já estava preparada para a folia, com pierrots, colombinas, arlequins, confetes e serpentinas.
Na vitrola chique do telegrafista Orlando Pinto Junior, o Didinho, que jogava na zaga do Ibituruna Foot-Ball Club, certamente estava rodando o disco com a marchinha O teu cabelo não nega, de Lamartine Babo e Irmãos Vitale.
Didinho era filho do maestro Orlando Pinto, que comandava a banda de música da Figueira, que se chamava Figueira Jazz. Didinho tocava saxofone e sua relação com a música ia além de executar o instrumento e ler as partituras do velho Orlando.
Ele tinha os discos mais atuais da MPB e, segundo Mundinho, a vitrola mais chi- que da Figueira. Andava sempre com os melhores ternos. Esse estilo bon vivant de Didinho foi conquistado com muito suor e graças ao seu talento como telegrafista.
A marchinha do Lalá, um dos maiores sucessos carnavalescos de todos os tempos, tem versos que hoje podem ser considerados politicamente incorretos: “mas como a cor não pega, mulata/ mulata eu quero seu amor”. E outros versos politicamente corretíssimos e pra lá de irônicos: “mulata, mulatinha, meu amor, fui nomeado seu tenente interventor”.
Era uma ironia de Lamartine Babo ao ato de Getúlio Vargas, que havia nomeado tenentes para os governos dos estados, logo após a Revolução de 1930, que o conduziu para o Palácio do Catete como Presidente da República. Na marra e na marreta.
Detalhe perverso para a nossa história: nessa época, um pouco mais adiante, Getúlio Vargas nomearia Benedicto Valladares Ribeiro como interventor do Estado Minas, em 1933. Valladares era o único interventor chamado por Getúlio de “governador”.
Que coisa! Quando Figueira virar cidade todos terão de carregar esse fardo: Governador Valladares.
Mas enquanto esse dia não chegava, o carnaval pegou fogo na Figueira, o coro leonino e a vitrola chique do Didinho foram tocando a marchinha do Lalá, e o Ibituruna embarcou, nesse ritmo, no trem da EFVM rumo ao povoado da Cachoeirinha.
Para se chegar lá, a dele- gação e alguns torcedores, dentres estes, Inhazinha Rocha, embarca- ram na manhã de terça-feira, 9 de fevereiro, às 11h, no trem misto M4, na Estação Figueira.
Este trem era a única opção para os figueirenses irem à Cachoeirinha e voltar no mesmo dia.
O trem misto M4 chega- ria em Aimorés às 17h40 e ficaria por lá para o pernoite, mas a de- legação figueirense voltaria no trem de passageiros P1, que saíria de São Carlos, às 6h da matina e passaria pela Estação Cachoeirinha logo após o jogo, às 16h58, chegando à Figueira às 18h20. Perfeito! Depois de quase 3 horas de viagem, o Ibituruna Foot-Ball Club desembarcou na Estação Cachoeirinha, às 12h47.
Os jogadores chegaram, trocaram de roupa, foram a campo, jogaram e perderam. De goleada! O time da Figueira enfrentou o “esquadrão do Palestra”, que jogava com camisas azuis e calções brancos, e era um bom time. Bom nada, ótimo.
Quem me contou isso foi Malvino Gonçalves Caldas, o Vininho, lateral direito do Palestra e que, em 2010, contabilizava 92 anos de vida íntegra, boa saúde e uma memória de dar inveja.
Vininho, que morava na Cachoeirinha e ajudava seu pai, José da Silva Caldas, no comércio, apesar da pouca idade, era bom de bola e teve a chance de jogar contra o Ibituruna.
Ele lembrou que o técnico do Palestra pediu que ele ficasse mais preso à defesa. Vininho diz que no jogo, o time da Figueira se comportou bem, jogando normalmente, tocando a bola. Mas levou uma goleada histórica: 5 x 0.
“Os gols foram saindo naturalmente, com o decorrer do jogo”, disse. Mas a tranquilidade de Vininho para descrever a partida, tantos anos depois não foi a mesma que torcedores e jogadores do Ibituruna tiveram para avaliar a atuação do time.
A história contada à boca miúda, é que à época, a principal acusação contra os jogadores que levaram a “saco- lada” do Palestra, é que a maioria deixou-se levar pela folia momesca dos irmãos Orlando e Corando, e do coro leonino da Rua de Baixo. Teria, segundo as más línguas, viajado assim, meio desligada, sonolenta, com a cabeça em “Lins” (Lugar incerto e não sabido). Mas quem estava lá garante: não tinha bêbado lá, não. Vininho afirma que em campo, durante o jogo, nenhum jogador do Ibituruna apresentava sintomas de ter bebido. “Isso é história”, disse ele, sobre os comentários de que o time da Figueira tinha jogado sob efeito da “marvada” pinga.
Bêbados, sóbrios, embalados pela folia, enfim, o estado físico e espiritual dos jogadores do Ibituruna é controverso. A verdade é uma só: o pau comeu depois do jogo, sem violência, mas no falatório, um blá-blá-blá infindo.
Zezé Simões contou-me, em 1995, que Inhazinha Rocha falou sem parar, “pagou geral”, desovou discursos homéricos e sentou a borduna, sem dó, nem piedade.
A derrota por goleada foi um vexame para o futebol da Figueira, que gozava de grande prestígio futebolístico na região e custou caro.
O Ibituruna Foot-Ball Club foi dissolvido. Nas muitas versões sobre as consequências deste jogo, alguns afirmam que a dissolução começou dentro do trem, na viagem de volta.
Mas o mecânico e ex-jogador de futebol, Marcos de Oliveira, com quem conversei em 2010, contou-me outra história, sem fanfarrice ou fantasias, e baseada em registros precisos de sua memória. Marcos é um potiguar que chegou em Figueira em 1937. Veio com sua família, de Natal, RN, para se juntar a alguns parentes que moravam na Figueira.
A história do jogo do Ibituruna contra o Palestra Itália no povoado da Cachoeirinha, que lhe foi contada pelo seu tio, Agenor Virgilio de Oliveira, ainda permanecia viva em sua memória.
“Meu tio me contou que neste jogo, o time de Cachoeirinha massacrou o Ibituruna por 5 x 0. Foi um escândalo e a diretoria do Ibituruna resolveu acabar com o time”.
Ele contou que o tio Agenor lhe confidenciou a saga de sua família retirante, que fugiu da seca no norte em busca do eldorado no sudeste. Agenor veio primeiro, de navio, até Vitória.
Teve sorte, conseguiu trabalho como maquinista na Morrison Knudsen do Brasil e veio parar em Figueira do Rio Doce.
Em 1932, chegou em Figueira o irmão de Agenor e pai de Marcos, Gonçalo Virgilio de Oliveira.Veio de navio até Vitória, numa viagem que durou cinco meses. Depois, embarcou num trem e sacolejou 12 horas e tantas até Figueira.
Logo logo, Gonçalo arranjou emprego no armazém do comerciante Seleme Hilel, carre- gando pesados sacos de café e cereais.
Em 1937, veio a mãe de Marcos e esposa de Gonçalo, Georgina Alves de Oliveira. “Dois meses depois viemos eu, minha avó, minha irmã e meu tio. Viemos de navio e trem”. Marcos lembra que todos vieram com passagens doadas pelo governo do Rio Grande do Norte. Caso contrário teriam morrido de fome em meio à seca.
Garoto bom de bola, Marcos ouvia os ensinamentos do tio Agenor, que lhe contava várias histórias ocorridas na Figueira.
Uma destas foi o massacre do Palestra sobre o Ibituruna, que Marcos contou ao Jornal de Domingo no dia 5/10/1995.
“Meu tio Agenor conta que em 1932 ele treinava um time de garotos em um campo de futebol localizado na quadra cercada pelas ruas São Paulo, Marechal Deodoro, Caio Martins e Marechal Floriano. Com o fim do Ibituruna, o Cornélio Alves, torcedor do Ibituruna, sugeriu que ele e meu tio formassem um novo time. Cornélio assumiu a presidência do time e meu tio Agenor, a vice-presidência. Pode vibrar Pantera Cor-de-Raça. Anotem aí o nome do novo time: Sport Club Democrata, que tinha as iniciais S.C.D.
Marcos também contou que seu tio Agenor foi tão dedicado ao Sport Club Democrata, que derrubou uma parede de sua casa, criando um ambiente maior, mais confortável, no qual os primeiros diretores se reuniam.
Entre os diretores que se reuniam na casa de Seu Agenor estavam Chaim Salomão, Mário Rocha e Silva, Lauro Pereira, Milton Amado, Antônio Alcântara, Anastas Maraslis, Cornélio Alves Mendes e outros.
Agenor também desenhou o primeiro escudo do Democrata, com as iniciais S.C.D. O “S” é o principal elemento tipográfico do es- cudo, com a letra “C” dentro da curva superior, e a letra “D” dentro da curva inferior.
Este escudo foi usado nas camisas dos jogadores que estão na foto em pose de “pirâmide invertida”, formação clássica dos anos de 1930, não só para a pose, como no esquema tático.
Nesta pose, aparecem embaixo, o goleiro (que naquela época era chamado de go- al-keeper ou keeper) e os dois zagueiros.
Acima, na outra linha de três, ficavam dois laterais e o centro-médio (center-half). Na linha de cima, com cinco homens, os pontas direita e esquerda, dois atacantes (inter- no e externo) e o centro-avante.
Os primeiros a usar o uniforme com o novo escudo foram: Chaim Salomão, Melanton, Pedro Pinto e Laude- lino; Hércules e César Simões; Adhemar, Didinho, Raymundo Simões, Cid Pitanga e Ulisses Amado. Uhu!
O escudo do Sport Club Democrata também pode ser visto, ampliado e bordado em uma das primeiras bandeiras da torcida democratense de Figueira do Rio Doce, numa foto que registra um funeral de um jogador do S.C.D. Nesta foto, o jogador que está no caixão não é identificado.
A foto também não tem data, nem seu autor é conhecido. É parte do acervo do Museu da Cidade, que possui muitas fotos sem identificação. A foto do funeral é um belo registro histórico. Grande parte dos jogadores campeões de 1932 aparecem, com a tristeza es- tampada em suas faces. Identifiquei na foto: Laudelino, Ulisses Ama-do, César Simões, Pedro Pinto e Didinho.
Hoje, o Sport Club Democrata, da Figueira, que atualizou o seu nome para Esporte Clube Democrata, é o maior patrimônio da cidade de Governador Valadares, que deveria abraçá-lo, e conduzi-lo à gloria. Estamos no Troféu Inconfidência e na Série D do Campeonato Mineiro. Se o Democrata é um time que tem uma cidade, que tal essa cidade dar a esse clube o que ele merece: o topo do mundo!
VOCÊ SABIA?
O primeiro título da Pantera
O primeiro título do Democrata como time de futebol profissional, foi o de Campeão da Taça Minas Gerais, após vencer o Uberlândia por 2 x1.
O técnico era Yustrich, que na foto aparece fazendo a sua preleção no gramado do Mammoud Abbas.
No jogo que decidiu o título da Taça Minas Gerais, realizado no dia 28/11/1981, o Democrata venceu o Uberlândia por 2 x 1.
O Democrata começou perdendo, mas no viravira, o cabeludo Antonio Carlos marcou dois golaços e entrou para a história.
O time campeão jogou com Serginho, Fausto, Fred, Darci Menezes e Ferreira. Naves (Nino), Dirceu (Jairo), Antônio Carlos. Batistote, Ziquita e Faísca.