"Que pena justa é essa sem a escuta de quem vive o impacto direto da situação?". A indagação foi levantada pela presidente da Associação de Amigos e Familiares de Pessoas em Privação de Liberdade, Míriam Estefânia dos Santos, durante a primeira mesa do debate público sobre o Plano Pena Justa, na Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG), na manhã desta segunda-feira (7/7/25). O evento segue até o final do dia.
O plano, elaborado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), segue determinação do Supremo Tribunal Federal (STF), dirigida à União e todas as unidades da federação, com vistas à enfrentar a situação de calamidade e violações de direitos humanos nas prisões brasileiras.
O debate na ALMG, com três mesas na programação, atende a requerimento da presidenta da Comissão de Direitos Humanos, deputada Bella Gonçalves (Psol). O foco na parte da manhã foi a apresentação do plano em discussão para Minas Gerais, tendo a participação da sociedade civil como principal alvo dos questionamentos.
Uma consulta pública virtual aberta à sociedade sobre o Plano Pena Justa estará disponível de 7 a 18 de julho.
"Ousem e fiquem à vontade nessa participação", conclamou Solange de Borba Reimberg, juíza Coordenadora do Grupo de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e das Medidas Socioeducativas (GMF), do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG).
Contudo, para Míriam Estefânia dos Santos, a consulta virtual não é suficiente. Ela cobrou a recomposição imediata do Comitê de Políticas Penais do Estado de Minas Gerais, para incluir a representação da sociedade civil nessa instância, responsável por coordenar e implementar ações e políticas no âmbito do Pena Justa, com coordenação do TJMG e da Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública (Sejusp). "Deixar a sociedade civil de fora do comitê é escolher reforçar a exclusão", protestou ela.
Segundo ela, a entidade que dirige recebe denúncias diárias de torturas e violações diversas e precisa ser considerada no plano.
"São denúncias de comida azeda, falta de medicação, falta de tudo, não tem nada, a não ser tortura física e psicológica", reiterou.
"Não vamos aceitar ser figurantes nesse plano."
Míriam Estefânia dos Santos - Presidente da Associação de Amigos e Familiares de Pessoas em Privação de Liberdade
A demanda foi endossada pela deputada Bella Gonçalves, que defendeu que a Sejusp adote providências para realizar a consulta também dentro das unidades prisionais.
Plano deve levar em conta racismo estrutural
Na apresentação do plano estadual, em elaboração, a juíza Solange de Borba Reimberg frisou estar em jogo buscar respostas e ações concretas para responder ao desafio de como resolver um "estado de coisas inconstitucional" que assola o País há séculos.
A coordenadora do GMF do TJMG defendeu que o plano mineiro precisa levar em conta que a maioria das pessoas privadas de liberdade são negras, que passaram por racismo e pela discriminação, fazendo parte de uma população invisível.

"O racismo tem que permear toda a discussão, para o enfrentamento também do racismo institucional na busca por justiça racial", alertou a juíza Solange de Borba Reimberg. Foto: Luiz Santana ALMG
A juíza ressaltou que Minas é o segundo estado com maior população prisional do Brasil. "O desafio é enorme em todos os números, mas essa não é uma guerra de instituições, e sim momento para a união de todos", conclamou por vários momentos de sua exposição.
Medidas, metas e indicadores para Minas Gerais
Solange de Borba Reimberg explicou que o plano nacional traz 141 medidas, 307 metas e 366 indicadores, os quais devem ser considerados pelos estados dentro de cada realidade. Do conjunto nacional, o recorte mineiro abrange 196 metas em quatro eixos:
- análise de controle de entrada e das vagas
- qualidade da ambiência, dos serviços prestados e da estrutura prisional
- processos de saída da prisão e da reintegração
- políticas para não repetição do estado de coisas inconstitucional no sitema prisional.
No eixo 2, da ambiência, ela destacou a importância da análise da situação interna das estruturas; e no 3, a verificação de como o preso realmente deixa o sistema, se com documentação e oportunidade real de reintegração, se tem a sensação de que é integrante de uma comunidade.
O plano prevê ainda que trabalho no Estado deve prosseguir em seis câmaras temáticas, basicamente correspondendo aos quatro eixos, com mais dois, um tratando da justiça racial e outra de orçamento, conforme acrescentou.
Apesar da importância do recurso financeiro para executar o plano, Solange alertou para a importância de passos anteriores.
"Hoje falta política pública e planejamento estratégico. Não adianta só o dinheiro", frisou, avaliando que será preciso alinhar e integrar ações do SUS e do Suas e ainda considerar boas práticas da sociedade civil. "Um processo que demanda diálogo interinstitucional e intrainstitucional".
Condições de trabalho precisam também ser observadas
Mireilli Cologna, assessora da Chefia de Gabinete da Sejusp, argumentou que o formato do comitê veio de definição do CNJ e do Ministério da Justiça, que deve espelhar nos estados a mesma métrica usada no plano nacional. Segundo ela, as contribuições das várias instâncias e aquelas colhidas em consulta pública ficarão disponíveis por pelo menos 10 anos.
Ela apontou como desafios do plano a taxa média de ocupação do sistema prisional em Minas, de 1,63 preso por vaga, segundo a assessora uma lotação que impacta por exemplo o trânsito para alteração estrutural de unidades envolvendo obras.
A representante da Sejusp disse acreditar que, embora as violações mencionadas não sejam intrínsecas à carreira dos servidores públicos, é importante também trabalhar na melhor qualificação do quadro de pessoal e nas condições de trabalho nas unidades prisionais.
Desumanização e necessidade de mudanças
Na abertura do debate público, antes da primeira mesa, o defensor público e coordenador da Defensoria Especializada de Direitos Humanos, Coletivos e Socioambientais, Aylton Rodrigues Magalhães, defendeu que mudanças efetivas no sistema prisional devem considerar os direitos da população carcerária desde a instalação do inquérito policial até a ressocialização, após o cumprimento da pena.
A deputada Bella Gonçalves ressaltou o estado de inconstitucionalidade e desumanização vivenciado pelas pessoas apenadas nas unidades prisionais, devido à superlotação e condições degradantes de habitação e tratamento: “são espaços muitas vezes de tortura, dor e violência”.

A deputada Bella Gonçalves lamentou as prisões preventivas excessivas e as aplicações desproporcionais de pena para crimes de pequeno porte, como furtos e roubos, contribuindo para a superlotação. Foto: Luiz Santana ALMG
Fernando Gonzaga Jayme, vice-presidente do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos Humanos (Conedh), classificou como “absolutamente inaceitável” a situação apontada por relatórios de órgãos de combate à tortura e pelo Conselho Nacional de Direitos Humanos. “O sistema carcerário brasileiro tem requintes de crueldade”, disse o conselheiro.
“A gente percebe nesses relatórios que a maioria de denúncias de violações de direitos humanos vêm do sistema prisional”, completou o delegado da Polícia Civil Gilson Rodrigues Rosa. Ele mostrou preocupação também em como essas violações afetam o psíquico das pessoas encarceradas. Segundo a percepção do delegado, a maioria esmagadora dos indivíduos com restrição de liberdade têm algum problema de saúde mental.
Com informações do site oficial da Assembleia Legislativa de Minas Gerais