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O anjo do Noturno

O jornalista e produtor cultural Tim Filho conta uma história emocionante sobre a sua relação com a música de Hermeto Pascoal e Aldir Blanc
O aparelho de rádio portátil similar ao que era usado por Tim Filho nos anos 1980. Foto: Reprodução da Internet
segunda-feira, 13 outubro, 2025

Por Tim Filho

Quando eu cursava o mestrado em Gestão Social, Educação e Desenvolvimento Local, na UNA, em Belo Horizonte, MG, entre 2010 e 2012, eu participava das aulas de uma forma meio “avoada”. Zero novidade. Eu sempre fui assim nas salas de aula, desde a pré-escola, e no mestrado não seria diferente.

Bem, vamos lá: certa vez, uma professora do mestrado me disse: __Te admiro porque o seu aprendizado é autônomo. Você conhece música, futebol, artes visuais, jornalismo, e você aprendeu tudo isso de uma forma muito particular...

Fiquei feliz por uns instantes, porque eu sempre soube que esse conhecimento generalista é característico dos jornalistas (e eu sou jornalista), que sabem tudo e ao mesmo tempo não sabem nada, tanto que vivem de fazer perguntas.

E esse jeito de ser “avoado” em sala de aula significava que a cabeça estava processando milhões de coisas além daquilo que estava sendo ensinado. Creio que a tal professora tenha dito isso depois que passou pela minha carteira e viu que eu estava fazendo “outras coisas”. E para não dizer que eu era um “avoado”, e que estava misturando Ladislau Dowbor com Tom Jobim, preferiu poetizar a crítica. Salvo pela poesia!

Bem, vamos para 1981? Eu era um adolescente inquieto e cursava o curso técnico de Química Industrial. Era uma época analógica, sem telefone celular, internet e redes sociais. O que me conectava ao mundo era um aparelho de rádio, de bolso e de pilhas. Eu levava esse radinho para todos os lugares, inclusive para a sala de aula, escondido dentro de uma bolsa tiracolo. Só ficava visível o headphone, mono, com uma ponta espetada no rádio e a outra no meu ouvido.

Eu não vivia sem música. Música era o meu alimento. E nos anos 1980, eu trabalhava o dia inteiro e estudava à noite, das 19h00 às 22h30. E naquele tempo, havia um programa musical na Rádio Jornal do Brasil, do Rio de Janeiro, que se chamava Noturno e começava às 22h00.

Eu não poderia perder, não é? O Noturno era apresentado pelo jornalista Luiz Carlos Saroldi, que começava o programa assim: Boa noite, amigos próximos e distantes, está começando pela sua Rádio Jornal do Brasil AM, o Noturno... Ele dizia isso com a voz mixada à música tema do programa, que era linda, cheia de brasilidade.

Como o Noturno começava aos primeiros minutos da última aula, eu ligava o rádio durante alguma aula de Química Orgânica ou Inorgânica, Estatística, Física ou Matemática, só pra ouvir a música tema.

Mas que música era essa? Quem tocava? Quem era o compositor? Esses pontos de interrogação gravitaram sobre a minha cabeça durante anos.

O mistério começou a ser desvendado em 1988, quando eu ainda ouvia rádio, mas havia adquirido um equipamento sonoro de luxo: um Gradiente System 96, grafite, lindo demais, e ainda por cima, estéreo.

O aparelho de som era lindo, mas os discos de vinil eram caros. Comprar discos exigia uma engenharia financeira gigantesca. Até que um dia, surgiu uma oportunidade: um professor de Filosofia que lecionava em Governador Valadares, na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, e estava de mudança para Belo Horizonte, para lecionar na UFMG, resolveu vender seus discos. Aí, eu e um amigo arrematamos, a preço de banana, um lote de 100 LPs.

Eram muitos os discos. Eu fiquei com a metade. Comigo ficaram Egberto Gismonti, Larry Coryell, Naná Vasconcelos, Chick Corea, Airto Moreira e Flora Purim, e mais um tanto de virtuoses...

Que felicidade! Eu não dava conta de ouvir todos esses discos, nem todas as faixas. Ouvia um pouco de um, um pouco de outro e assim giravam as bolachas de vinil no toca-discos do Gradiente. Era disco que não acabava mais.

E o mistério sobre a música tema do Noturno? E os pontos de interrogação em órbita? Bem, creio que uns 25 anos depois da compra dos LPs, eles ainda estavam lá, girando, girando, até que, certo dia, fui mexer nos meus discos e peguei um dos cinquenta LPs que eu havia comprado em 1988.

Era um álbum duplo chamado The Essential... Airto Moreira featuring Flora Purim e Special Friends. Esse disco eu havia ouvido pouco, embora fosse ótimo (embora seja), e resolvi fazer justiça ao Airto e à Flora, e aos seus special friends, que eram: Ron Carter, Hermeto Pascoal e Sivuca.

Pensei: Vou ouvir tudo, os quatro lados desses dois LPs.

Botei os discos no toca-discos e deixei tocar. E fui fazendo “outras coisas” enquanto ouvia, até que, de repente (súbito, diria o Tom Jobim), começou a tocar uma música que me atingiu como uma flecha no coração.

E o santo anjo do Senhor falou aos meus ouvidos: __vamos, anda logo, vamos, está começando o Noturno!

Meu Deus do céu, era o tema do Noturno. Quase 30 anos depois, estava revelado o mistério. Corri pra perto do toca-discos, tirei o disco e vi que o tema do Noturno estava na última faixa do lado C, cujo título é Bebê, uma composição de Hermeto Pascoal.

Chorei!

Chorei feito um bebê.

Se chorei? Claro que chorei. Chorei porque me lembrei do radinho de bolso e de pilha; porque me vi sentado em uma das carteiras da Escola Técnica, na sala de aula do curso de Química Industrial; porque me vi na sala de aula do mestrado mexendo em “outras coisas”. Chorei ali na sala da minha casa, que havia se transformado em um espaço de emoções musicais, iluminado pela aura do grande gênio da música: Hermeto Pascoal. Chorei porque o tempo maltrata a gente. Que maldade! E eu ouvi as batidas na porta da frente, descritas pelo Aldir Blanc, em Resposta ao Tempo. Deixa pra lá! No fundo eu sou uma eterna criança que não soube amadurecer!

Post Scriptum 1:

Dedico essa crônica ao Mauro Senise. Explicarei o motivo. Quando eu estava pesquisando sobre o Luiz Carlos Saroldi no Dicionário Cravo Albin da Música Brasileira, vi que o Saroldi morreu em 2010, e no seu currículo constam várias entrevistas importantes. Uma delas foi feita em 1977, com o Hermeto Pascoal, no estúdio da Rádio Jornal Brasil.

Está lá no Dicionário Cravo Albim: O programa com Hermeto Pascoal, que tocou Bebê, acompanhado do flautista Mauro Senise, foi também um dos que causou maior impacto junto aos ouvintes. A música “Bebê” já era então o prefixo do programa apresentado por Saroldi...

Que coisa! No dia seguinte à morte do Hermeto, o Mauro gravou e postou um depoimento em seu Instagram. E em meio às lágrimas, ele lembrou da generosidade do Hermeto em convidá-lo para ser seu parceiro musical, quando ele era um jovem flautista.

Mauro Alceu Amoroso Lima Senise, neto do grande Alceu Amoroso Lima, o Tristão de Athayde. Essa crônica é pra você, que é meu amigo da música! E pra Ana Luisa também! E pro Bartók, que está em todas...rs

Post Scriptum 2

Voltando ao ano de 1981, reconheço: eu era péssimo em Química Orgânica e levei bomba nessa matéria. Tive de cursar uma “dependência”. Culpa do Hermeto! Ah, Hermeto!

Sobre o autor

Alpiniano Silva Filho (Tim Filho) é jornalista profissional, filiado à Federação Nacional dos Jornalistas (FENAJ) e associado da International Federation of Journalists (IFJ). Graduado em Jornalismo/Publicidade e Propaganda pela Universidade Vale do Rio Doce, de Governador Valadares, MG, Brasil, Tim Filho e editor do Jornal da Cidade Vales de Minas e também realiza trabalhos internacionais nos Estados Unidos e África (países de língua portuguesa). É associado da The Authors Guild (Associação dos Escritores de Nova Iorque). Produtor cultural, realiza há 26 anos o Valadares Jazz Festival, em Governador Valadares, MG

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