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domingo, 26 outubro, 2025

O Cassino da Ignorância: o absurdo das “bets” no Brasil

Leia a coluna desta semana de Jamir Calili
Bets. Foto: © REUTERS/Alexandre Meneghini

por Jamir Calili

Costumo ser um homem tolerante com as liberdades individuais e, confesso, de inclinação liberal quanto à economia. Acredito que o Estado não deve sufocar o cidadão com proibições e amarras. Mas há algo que me tira do sério e que beira o inacreditável: a permissividade do Brasil com as chamadas bets, as casas de apostas esportivas e eletrônicas que tomaram conta do país como uma praga digital. Não é moralismo, é bom senso. Meus alunos já me ouviram falar, inúmeras vezes, contra essa praga que se espalha pelo mundo. Não se trata de opinião, mas de constatação: estamos diante de um problema social, econômico e político de grandes proporções — e o silêncio das autoridades é, no mínimo, cúmplice.

Nos últimos anos, o volume de dinheiro movimentado por essas plataformas ultrapassou R$ 120 bilhões por ano, segundo estimativas da Fundação Getúlio Vargas e da LCA Consultores. A maioria desses recursos sequer fica no país: cerca de 80% das bets operam com sede no exterior, muitas em paraísos fiscais, sem pagar um centavo de imposto sobre o lucro que obtêm aqui. Enquanto isso, milhares de famílias brasileiras se endividam, e milhões de reais deixam de circular no comércio local, na indústria, no turismo e até no lazer saudável das pessoas.

O impacto econômico é devastador. Cada real gasto em uma bet é um real a menos que circula no pequeno comércio, no restaurante do bairro, na economia produtiva. É dinheiro que some da vida real e vai engordar cofres virtuais de grupos internacionais que sequer correm riscos. As apostas esportivas não têm o caráter de jogo — são verdadeiras máquinas de manipulação algorítmica. Ao contrário do poker ou de um bingo beneficente, nas bets o jogador não joga: é jogado. E perde sempre.

Há também o aspecto moral e social. As bets têm sido responsáveis por um aumento alarmante de casos de vício em jogos e de endividamento pessoal. A Associação Brasileira de Psiquiatria estima que mais de 2 milhões de brasileiros já sofrem de algum grau de “jogo patológico”, número que cresce entre jovens. São histórias que começam com pequenas apostas e terminam em destruição financeira e emocional. E o mais grave: tudo isso é impulsionado por publicidade massiva, feita por influenciadores e jogadores de futebol, que vendem uma ilusão de sorte fácil e riqueza instantânea. Todos irresponsáveis do ponto de vista moral e do ponto de vista legal.

É revoltante que o Congresso Nacional — especialmente o Senado — continue paralisando projetos de regulamentação e tributação do setor. O lobby é poderoso. Há parlamentares que se comportam como representantes das bets, e não do povo. O governo federal, que deveria agir, titubeia: ora propõe taxar, ora recua diante da pressão. E, para coroar o absurdo, o Governo Lula quer agora que a Caixa Econômica Federal entre no mercado de apostas, transformando o Estado em sócio da desgraça alheia. A loteria nacional, ao menos, tem regras claras e destina parte relevante dos lucros à assistência social, à educação e ao esporte. Já as bets não têm função pública nem transparência; são o cassino da ignorância travestido de entretenimento.

Não sou contra o jogo, sou contra a trapaça. Jogos como o poker ou as rifas beneficentes possuem sentido social e comunitário: reúnem pessoas, dependem de estratégia, sorte e convivência. As bets, ao contrário, isolam, alienam e viciam. São o oposto da sociabilidade — um entretenimento sem alma. E não há justificativa ética, econômica ou jurídica para continuarem atuando com tamanha liberdade.

Meu objetivo é propor soluções: uma regulamentação eficaz deve exigir tributação progressiva e regras rigorosas de funcionamento. O tributo arrecadado deveria ser vinculado por lei a áreas que atenuem os próprios danos provocados por esse tipo de vício: campanhas educativas sobre saúde mental e endividamento e o reforço da rede de atenção psicossocial do SUS ou até mesmo pautas que poderiam favorecer a sociabilidade e o comércio como o financiamento do transporte público gratuito. Além disso, toda propaganda dessas plataformas deveria trazer, ostensivamente, avisos de risco e mensagens preventivas, nos mesmos moldes das advertências em maços de cigarro.

É o mínimo que um país responsável deveria fazer. O mesmo Estado que multa quem fuma em local fechado não pode fingir que não vê milhões de brasileiros sendo sugados por algoritmos de azar. Não se trata de proibir o prazer ou infantilizar o cidadão — trata-se de proteger o que resta de racionalidade e de decência pública em meio a um cenário de permissões perigosas.

Defendo a liberdade econômica, mas não a libertinagem financeira. A liberdade só é virtuosa quando caminha ao lado da responsabilidade e da razão. As associações voltadas para o comércio deveriam se insurgir como isso, bem como igrejas, escolas, universidades etc. A aposta sem limite não é entretenimento; é doença social. O Estado não pode ser cúmplice disso — e muito menos seu sócio.

Jamir Calili, professor de Direito da UFJF, Campus GV, vereador, membro da Academia Valadarense de Letras, em Coautoria com Marcos Vinicius Queiroz Eller e Thairlom Alves Faria (Bacharéis em Direito pela UFJF e advogados).

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