por Jamir Calili
O bairro valadarense, Lagoa Santa, é uma metáfora dolorosa do que ocorre quando o crescimento urbano avança sem planejamento e o poder público fecha os olhos para o óbvio. A cada chuva forte, o drama se repete: ruas alagadas, casas invadidas pela água, moradores ilhados, prejuízos materiais, etc. O problema não é novo. E tampouco é natural. O que vemos ali é o resultado previsível da soma entre a omissão pública e a irresponsabilidade privada de loteamentos mal concebidos, feitos sem o devido respeito ao solo, à topografia e ao curso das águas.
A tragédia da drenagem urbana não começa quando o céu desaba — ela nasce nos gabinetes, ao se aprovar um projeto sem estudos hidrológicos, sem previsão de contenção de cheias, sem galerias pluviais adequadas. No caso do Lagoa Santa, o desenho original do loteamento ignorou o curso natural das águas e transformou o entorno da lagoa em um funil. O desnível entre bairros próximos, a falta de áreas verdes e de infiltração e a ausência de manutenção nas estruturas existentes formam um coquetel de risco que transborda a cada ano.
Mas o que chama atenção agora é um agravamento anunciado. Moradores observaram novas construções sobre o canal da Rua José Ivair Ferreira Mattos (precário, mas essencial). Essa ocupação indevida, que estreita a passagem das águas e reduz a permeabilidade do solo, ameaça agravar ainda mais uma situação que já é crítica. Solicitei formalmente à Prefeitura, desde o dia 10 de junho, informações sobre o licenciamento dessas obras, a existência de estudos técnicos, pareceres ambientais e a eventual autorização para intervir em área de drenagem. Até hoje, silêncio.
Não bastasse a estrutura de lojas já construídas, agora as máquinas avançam. O que se diz informalmente é que se trata somente de uma obra para formar um “muro de contenção provisório”. Mas o que se vê é a ampliação de um canteiro de obras que, a olhos nus, tende a restringir o fluxo da água. Em vistoria visual, foi possível constatar a substituição de grandes tubos metálicos de drenagem (2.000 mm) por outros de concreto com diâmetro aparentemente reduzido pela metade, assentados de forma irregular e sem controle técnico. É a crônica de um alagamento anunciado.
As normas da ABNT e o Código Ambiental Municipal são claros: qualquer intervenção em área de preservação permanente ou em rede de macrodrenagem deve ser precedida de estudo técnico, licença ambiental e acompanhamento profissional. O que está em jogo não é somente a legalidade, mas a segurança de centenas de famílias. A substituição de um tubo, a retirada de um talude, a simples impermeabilização de um terreno podem alterar completamente o comportamento das águas. E água não perdoa erro humano. Ela segue o curso que lhe foi negado — e, quando não encontra caminho, invade o caminho dos outros.
O problema do Lagoa Santa, contudo, não é um caso isolado. É o sintoma de um modelo de expansão urbana que repete velhos vícios: loteia-se primeiro, regulariza-se depois, e o Estado chega sempre tarde. Em Valadares, a drenagem urbana nunca foi tratada como política pública de infraestrutura, mas como um apêndice eventual das obras de pavimentação. Fala-se em asfalto, mas não se fala em galerias. Fala-se em crescimento imobiliário, mas não em microbacias, recarga hídrica, manejo de águas pluviais. O resultado é o que se vê: bairros inteiros construídos sobre antigos cursos d’água, cada temporal vira prestação de contas da negligência acumulada.
Não é preciso ser engenheiro para compreender o risco de ocupar um canal de drenagem. Basta observar o que a história ensina. Toda tragédia é precedida por alertas ignorados. Por isso, na próxima semana, apresentarei à Câmara Municipal um requerimento propondo a realização de uma audiência pública para discutir o tema com técnicos, moradores, Ministério Público, Secretaria de Obras e órgãos de controle. É hora de esclarecer as dúvidas, exigir transparência e pactuar um plano de ação.
A cidade precisa compreender que drenagem não é luxo técnico: é política social. Quando a água invade uma casa, ela não distingue renda nem ideologia. E quando a prefeitura se omite, quem paga a conta é sempre o cidadão, que vê seu patrimônio ruir e sua dignidade ser levada pela enxurrada.
Sou um defensor convicto da construção civil e da função social da propriedade. O desenvolvimento urbano é necessário e desejável. Mas o progresso não pode ser inimigo dos fatos naturais. Uma cidade só é moderna quando respeita seus rios, suas lagoas e seus cursos d’água. O contrário disso é repetir erros que custam caro.
Valadares tem inúmeros desafios urbanos: pavimentação, transporte, moradia, saneamento. Mas nenhum resistirá se continuarmos tratando a drenagem como problema secundário. É hora de agir responsavelmente. Que as águas do Lagoa Santa não se tornem um símbolo do descaso, mas o ponto de partida para uma política urbana que una desenvolvimento e sustentabilidade. Ainda há tempo.
Jamir Calili, professor de Direito da UFJF, Campus GV, vereador, membro da Academia Valadarense de Letras, em Coautoria com Marcos Vinicius Queiroz Eller e Thairlom Alves Faria (Bacharéis em Direito pela UFJF e advogados).





