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domingo, 31 agosto, 2025

Por que a democracia liberal importa?

Leia a coluna desta semana de Jamir Calili
Democracia. Foto: Reprodução da Internet

por Jamir Calili

Imagine uma cidade em que 90% dos moradores decide proibir, em votação aberta, a prática religiosa do outro 10% porque “incomoda”. A maioria venceu: estaria certo? Intuitivamente, não. Aqui começa a conversa sobre democracia liberal: um regime em que a vontade da maioria importa, mas não define sozinha as regras do jogo. Ela opera sob limites que protegem direitos, sobretudo os de quem perde. Esse ponto parece simples, mas vem sendo soterrado por disputas que tratam política como torcida. O maior obstáculo aos ditadores, de qualquer espectro, é a institucionalidade da democracia liberal. Ela exige respeito às regras apesar dos humores da maioria. Autoritarismos costumam nascer invocando o voto; as regras existem para conter impulsos majoritários contra minorias.

Jon Elster, em “Ulysses Unbound”, mostra que pessoas e instituições criam amarras voluntárias para conter paixões. Como Ulisses preso ao mastro, escolhas individuais e arranjos coletivos, como constituições e cláusulas pétreas, ampliam a liberdade prática e neutralizam cantos autoritários. Mais que cultuar líderes, é preciso respeitar instituições. Elas nos protegem de nossos impulsos. A democracia liberal se ancora em sistema constitucional, criado como freio ao abuso. Idealmente surge sob o “véu da ignorância”, quando aceitamos regras gerais sem saber de que lado estaremos. No Brasil, ergueu-se esse arranjo ao sair do autoritarismo, com medo de recaídas.

Por muito tempo, setores da esquerda tacharam tais regras de burguesas. Hoje, parcelas da direita repetem a crítica em nome da vontade popular. Em ambientes polarizados, maiorias se formam por margens estreitas. É justamente aí que a democracia liberal mostra seu valor: trata-se de governo de leis que valem para todos, inclusive para quem venceu. A tentação de substituir instituições por “o povo” é antiga e perigosa. A promessa de democracia direta permanente costuma nascer com pureza e terminar em concentração de poder. Não faltam exemplos: Napoleão, o nazismo e o chavismo mobilizaram plebiscitos e retórica popular para corroer o pluralismo. O problema não é ouvir o povo, e sim tratá-lo como entidade una que transforma dissenso em inimigo interno. Tocqueville falou em tirania da maioria. Popper ensinou que o teste de um regime livre é poder substituir governos sem violência. A lição coincide: não há democracia sem limites jurídicos à própria maioria.

Isso não significa desconfiar do voto, mas qualificá-lo. Votar é escolher projetos e representantes; não é licença para rasgar garantias. A separação de Poderes não é formalismo, é o mecanismo que impede que a vitória vire esmagamento. Tribunais independentes não anulam a soberania popular, eles a civilizam. Asseguram que o direito de reunião, a liberdade de imprensa e a presunção de inocência não sejam atropelados pelo clima da vez.

Há frustrações legítimas com a política representativa: partidos descolados, burocracias opacas, escândalos. A resposta fácil promete atalhos digitais e decisões ao sabor das ruas. A responsável é reformar instituições: transparência, financiamento limpo, partidos programáticos, participação qualificada, avaliação de políticas e federalismo cooperativo. “Mais democracia” aqui é mais institucionalidade. Reforçar a democracia liberal não é pauta de direita ou de esquerda, é pauta civilizatória. Quem governa hoje deve lembrar que amanhã pode ser minoria e agradecer a Constituição. Quem está na oposição precisa resistir à tentação de queimar regras para encurtar caminho. Jogadores importam menos do que o tabuleiro. Sem tabuleiro, o jogo vira briga.

Precisamos nos lembrar sempre que somos uma democracia, é verdade, mas uma democracia constitucional, republicana, federativa e com separação de poderes em três ramos. E cada uma dessas características possuem possibilidades e restrições. É verdade que o Presidente pode muito, mas não pode tudo. Se a União tem poderes, os Municípios, também os tem. E é verdade que a maioria é importante, mas, é autolimitada. Esses limites estão a nosso favor, não contra nós: limitações que nos protegem de nós mesmos.

Num tempo que idolatra “o povo” como bloco monolítico, vale repetir o óbvio: povo é plural, feito de vozes e desacordos. A política democrática organiza o conflito sem violência, pela mediação do Direito. Ao defender a democracia liberal, defendemos o direito de perder hoje sem perder direitos amanhã. Protegemos minorias por prudência: todos podemos ser minoria. As democracias liberais consideram a vingança como prática política a ser neutralizada e repulsiva. Se há crise democrática, ela não se resolve com menos instituições, e sim com instituições melhores. Regimes livres se medem pela forma de trocar governos. Para que essa troca continue possível, é preciso proteger as regras do jogo, sobretudo quando incomodam quem venceu. A força da maioria está em aceitar limites. Numa democracia digna desse nome, ninguém pode tudo.

Jamir Calili, professor da UFJF, vereador, membro da Academia Valadarense de Letras, na cadeira de Machado de Assis.

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